sexta-feira, 2 de março de 2018

Os bagres de cativeiro (ou: a terceirização da culpa), por Gustavo Conde



por Gustavo Conde

Peço desculpas preliminares aos ciristas, marinistas e psolistas. Mas, eu sou como a lagartixa: eu não tenho o rabo preso com ninguém, nem comigo mesmo. Feita a advertência, mergulhemos na questão.


O epísódio "Ciro Gomes" atualiza a 'pulsão de morte libidinal petista lulista reversa' que todo brasileiro recalcado politicamente tem dentro de si. Nesse sentido, Ciro e Marina são realmente idênticos. No fundo, eles morrem de inveja de Lula.

Lula, mesmo sendo caçado impiedosamente há 40 anos - e de maneira muito mais violenta há 3 - esbanja 40% de intenção de votos (60% dos válidos, mais ou menos) e Marina e Ciro, como todo o legado político e verbal que deixaram, ostentam seus 2% e 6% históricos, respectivamente. Eu também morreria de inveja.

Não bastasse, eles se colocam contra Lula e, fatalmente, alinham-se ao golpe (e à Globo). Me diz: tu não fica envergonhado de estar do mesmo lado da Globo, cirista-marinista? Ok. Pode ser que Ciro não esteja alinhado à Globo. Mas, pede para ele se manifestar a respeito. Vai ouvir um sonoro silêncio.

Ciro tem o ethos de machão, mas paga de indeciso como qualquer ex-tucano - lamento profundamente ter que dizer isso e desmanchar castelos de areia. Acenar para Marina Silva a essa altura do campeonato é o sintoma máximo do oportunismo e do desespero (e da humilhação).

Como a elite brasileira, eles também não suportam Lula - assim como o Psol não suporta Lula. Lula tem ‘sentido’ demais para eles. Eles não suportam tanto 'sentido'. Dá muito trabalho lidar com o sentido, exige interpretação de texto, essa coisa chata e cansativa.

Curioso e terrível ter que admitir que, em tempos bicudos e extremos, se você "pisca" para o poder que te sufoca e te manipula, você já está do lado deste poder. Não há meio termo (e isso é ótimo, porque mostra quem é quem).

Essa é uma lei espontânea da linguagem e do mundo simbólico (está em Michel Pêcheux e Jean-Jacques Courtine, linguistas franceses, para quem quiser se aprofundar). O mundo simbólico é complexo e polifônico? Sim. E é por isso mesmo que, às vezes, ele pode ser polarizado, dicotômico e maniqueísta. O mundo simbólco, meus caros, é um camaleão que jamais te dará uma chance de reduzi-lo a uma receita pronta e acabada.

De sorte que Ciro e Marina e respectivos simpatizantes não têm a menor ideia do que seja isso, mesmo Marina sendo uma insinuante ambientalista leitora de psicanálise e Ciro, um eminente professor de direito constitucional, frequentador de rodas sofisticadas de intelectuais orgânicos e, gloriosamente, ex-ministro de Itamar - além de ser um dos ‘pais’ do plano real.

Eles são a elite da elite brasileira, mesmo Marina tendo sido alfabetizada aos 16 anos, após infância paupérrima no Acre. Simplesmente, porque ela, 'coadjuvâncias insuportáveis' depois, passou a adorar a elite e a ela se converteu (muito mais do que à religião que professa e obscurece ao mesmo tempo).

A elite foi generosa com Marina, acolheu-a docemente através da 'educadora' Neca Setúbal, essa filantropa de vocação e de nascença - sem esquecer de Guilherme Leal, um dos donos da Natura e humanista convicto.

Ciro e Marina, Marina e Ciro. Deve doer aos simpatizantes desses rebentos encostar um nome no outro. Mas, eu lhes garanto: a culpa não é minha (eu não tenho nada a ver com isso).

O fenômeno que emerge dessas faíscas sentimentais - a aliança improvável e auto-rechaçada -, atende sempre por um e apenas um espasmo retórico: botar a culpa no PT.

Ciristas, marinistas e psolistas são profissionais da "terceirização da culpa". Algo deu errado? Culpa do PT. Contradição em mim? Culpa do PT. Passado inconfessável? Culpa do PT.

Ciro Gomes, portanto, fez-nos o favor de antecipar mais uma vez o suicídio da própria candidatura e o tradicional salto no penhasco dessa falsa esquerda que detesta Lula , mas que não consegue chegar ao poder nem formular absolutamente nada de novo – ou um discurso com vida própria, pelo menos. Como diz o meu amigo Leonardo Attuch, sem Lula, a política brasileira é um imenso vazio.

Fica meu agradecimento a Ciro. Ele foi pedagógico e se sacrificou. Queimou a si próprio mais uma vez e, de quebra, levou Marina - o que caracteriza outro favor à democracia representativa que não se alinha à Rede Globo no primeiro susto.

Vale decantar cifras desse histórico de ‘terceirização de culpa’. Em 2014, a candidatura fraudulenta de Marina desenhou isso. Ela quis debater e derreteu sozinha, com sua coleção infinita de contradições e ausência de clareza técnica (ela não sabe o que é economia). Caiu de joelhos diante de Dilma Rousseff, no que diz respeito ao debate. Foi humilhante.

E o que a esquerda ressentida fez? Botou a culpa no PT, ou melhor, nos marqueteiros do PT - de maneira alinhada à imprensa golpista e a intelectuais tucanos. Acusaram-nos de "destruir" Marina. Tem coisa mais pusilânime que isso? Sem esquercer que, no segundo turno, Marina deu a mão para Aécio beijar, outro legado que ela deixa à posteridade.

Marina, portanto, derreteu sozinha, isso é histórico. É desse vazio propositivo fatal que a suposta esquerda periférica se ressente tanto. Ela se deixa turbinar pela imprensa corporativa, morde as iscas como bagres de cativeiro, e depois se desencanta consigo mesma e com as próprias contradições, não sem deixar a conta, claro, para o PT. Se é para morrer, que se morra atirando, sempre.

A campanha de Ciro em 2002 foi caracterizada por este exato movimento (embora, ele tenha apoiado Lula no segundo turno): colocaram a culpa da fala dele sobre a própria mulher - fala que o fez derreter eleitoralemente - no PT. O PT foi culpado pelo machismo de Ciro Gomes, vejam vocês.

Com Freixo na Folha de S. Paulo, foi a mesma coisa. Simpatizantes do Psol ficaram decepcionados com a entrevista e o que fizeram? Colocaram a culpa no PT.

Cansa. Mas é bonitinho. Parece uma coisa, assim, de criança. Ciro Gomes e Marina Silva ainda vão nos dar muitas alegrias. Mas, seria interessante que eles defendessem a democracia em primeiro lugar, antes de defenderem seus próprios interesses pessoais. Enquanto eles insistirem em 'querer ser o Lula', eles vão apenas figurar como linha auxiliar do golpe.

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